Por: Heidi Hadsell
Globalização é a ordem do dia... Padrões de trabalho, carreiras profissionais, aposentadorias, finanças, agricultura, educação, modelos de ministério pastoral... Todas estas áreas da vida estão sendo afetadas por relações globais das quais estamos conscientes, pelo menos em parte, porém não compreendemos completamente. A maioria dos seminários e praticamente todas as universidades estão oferecendo cursos sobre globalização, posto que cada uma das disciplinas e profissões tenha de enfrentar esta realidade. A consciência de pertencer a este mundo globalizado provoca uma variedade de reações, sem dúvida, mesmo para as pessoas que estão em posição de compreender e se beneficiar com isso.
Para algumas pessoas, quem sabe até para muitas, a consciência da mudança do nosso centro de gravidade para longe do local - e mesmo do nacional - e mais perto do internacional, estimula o impulso de buscar proteção em barreiras de controle que sejam compreensíveis, que possibilitem às pessoas continuarem a viver a sua vida da melhor maneira possível, mesmo sabendo que o terreno em que pisam é areia movediça.
Para outros, esta realidade global é vista como ocasião para tentar controlar as mudanças, ou os efeitos da mudança em nível local, e também em nível nacional. Isso se dá, freqüentemente, através da afirmação do interesse individual ou nacional, e na tentativa de impor essa perspectiva a todo mundo.
As comunidades cristãs participam em ambas as reações. Elas talvez venham a ver a igreja primeiramente como fonte de conforto e cuidado, um abrigo onde se pode contar que as coisas não mudarão muito, aonde visões de mundo e pressuposições há muito estabelecidas não são questionadas, mas afirmadas e aonde membros das congregações possam proteger-se atrás de barreiras que afastam as mudanças e os ruídos, tão predominantes em outros espaços da vida cotidiana.
Pode ser também que as igrejas e grupos cristãos tentem ser assertivos quanto a uma visão de mundo altamente simplificada. Suas narrativas da realidade, a verdade como eles vêem, passam a ser impostas a todas as pessoas, tanto interna como externamente. Assim, eles podem passar a ver os eventos políticos e militares e os processos acelerados de mudança social como uma batalha do bem absoluto contra o mal absoluto, da verdade contra as mentiras, do triunfo do certo sobre o errado. Isto é, muitas vezes, descrito como um “conflito de civilizações”.
Num mundo em que cada vez mais se pensa de maneira polarizada, talvez a coisa mais difícil para as congregações locais e as denominações seja marcar, manter um espaço e uma posição engajados na realidade global, que seja capaz de levantar a voz, ainda que queira ser apenas uma voz entre tantas outras. Que seja capaz de ser, ao mesmo tempo, um abrigo e uma ponte em relação ao mundo ao redor. Este tipo de resposta pode ser descrita como ‘cristianismo cosmopolita’, cujo padrão foi estabelecido pelo Apóstolo Paulo, com suas viagens pelo Império Romano, sua insistência de que o cristianismo não é uma fé limitada por identidades étnicas, tribais ou localizações geográficas.
Esta não é a maneira mais fácil de ser cristão, de ser cristã. É uma maneira cheia de ambigüidades. É tão desafiante quanto é reconfortante tentar compreender como a fé cristã, primeiramente contada a dois mil anos atrás, se relaciona com a vida hoje, nesta era tão diferente e tão distante daquela. Deus realmente continua falando, mas discernir qual é a fala de Deus ainda é uma grande tarefa.
Para manter esta maneira de ser cristão, de ser cristã, é preciso lançar mão de vários recursos. Existem metodologias históricas e críticas que podem ajudar a ler a Bíblia e a fazer teologia e ética. Há exemplos concretos na vida das igrejas, tanto no passado como no presente. Os cristãos podem encorajar-se mutuamente em suas próprias denominações, como entre diferentes denominações e também encontrar esperança na realidade de vida da cristandade ao redor do mundo.
O cristianismo internacional, e ecumênico, a rede de relacionamentos que o cristianismo é e possibilita, ainda que facilmente despercebido, é um recurso precioso para dar forma ao ser cristãos e cristãs ‘cosmopolitas’. A rede cristã global faz do cristianismo talvez a maior ONG do mundo e dá aos cristãos um alcance e uma extensão que o mundo da política, dos negócios e da mídia certamente tem inveja.
São muitos os desafios enfrentados pelos cristãos, aos quais eu estou chamando aqui de ‘cosmopolitas’. Discutirei três deles brevemente.
O primeiro desafio é o de renovar a vitalidade e a energia das celebrações e cultos para que outros, incluindo nossas filhas e nossos filhos, nossos netos e nossas netas, possam encontrar neles vida e significado.
Em 2007 um bispo Episcopal do norte da Nigéria esteve no Seminário Hartford, participando no programa de relações entre muçulmanos e cristãos, elaborado por líderes cristãos que vivem em diferentes lugares do mundo onde existem conflitos entre esses dois grupos. O bispo e vários outros estavam conduzindo a liturgia na capela e cabia a ele proferir o sermão. Ele se levantou e colocou-se em frente ao nosso grupo da Nova Inglaterra, por sinal grupo pequeno e humilde, e sem poder evitar o que parecia ser uma expressão de desânimo, ele confessou que estava feliz por poder pregar, mas que ele simplesmente não sabia como fazê-lo para uma congregação em que havia tão pouco barulho, tão pouca resposta e tão pouco sinal de vida.
Não é segredo que o mundo cristão mudou radicalmente nos últimos 20 anos. Mudou tanto que hoje as igrejas independentes e as principais denominações cristãs em toda a África, Ásia e América Latina estão cheias do espírito e carismáticas. Muitas com muito pouco que possa diferenciá-las em termos de música e estilo de culto de seus vizinhos carismáticos e Pentecostais. Estas igrejas são fonte de muita vitalidade e crescimento. Isto é algo que o cristianismo está experimentando em muitas partes do mundo.
Muitas vezes os liberais vêem este tipo de cristianismo com certo ceticismo, se não com evidente desprazer e condenação. É certo que há distorções do evangelho, como é encontrada no evangelho da prosperidade, e que deveriam ser confrontadas e mesmo condenadas. Todavia, muitas dessas formas de cristianismo são doadoras de vida e afirmadoras da fé. Se não as condenarmos tão rapidamente, quem sabe pode-se aprender alguma coisa com elas.
Na parede da sala de jantar do Instituto Ecumênico de Bossey, do Conselho Mundial de Igrejas, na Suíça, está pendurado um grande painel que mostra um africano carregando um bebê, sobreposto a um mapa da Europa. Esse painel foi presente de um pastor africano que foi estudante em Bossey, e que ficou espantado pela falta de entusiasmo das pessoas em serem cristãs e de participarem da fé cristã na Europa. Então, quando ele voltou ao seu país, enviou este painel de presente, representando os africanos trazendo Jesus de volta à Europa.
Eu penso que ele tem um plano. Há tanta vitalidade doadora de vida ao redor do mundo e com a qual se pode contar... O salmo diz: “Vinde, cantemos ao Senhor, com júbilo!” Nossos irmãos e irmãs ao redor do mundo podem ajudar-nos a fazer isso.
Relações inter-religiosas, teologias de outras religiões, éticas dessas relações são, como sabemos, um dos grandes desafios que nossas igrejas têm de encarar neste século. Eu vejo este desafio como uma benção para o cristianismo, pois assim os cristãos e as cristãs são forçados a pensar novamente sobre a sua fé e como prestar contas de sua fé em um mundo radicalmente plural, livre da rejeição e da demonização de outras religiões. Eu prevejo para pessoas cristãs cosmopolitas que relações inter-religiosas construtivas e o modo de pensar que as acompanha provocarão o renascimento da reflexão teológica por toda a parte.
Em muitos lugares do mundo são dados os passos iniciais para a aceitação da pluralidade religiosa, em nível local e internacional. Felizmente há igrejas em muitas partes do mundo que estão vivendo num ambiente de pluralidade religiosa há muitos séculos. Podemos e, de fato devemos, aprender com essas experiências, tomá-las a serio, usá-las como fonte de reflexão e crítica às nossas próprias abordagens, engajá-las no diálogo tanto sobre teologia como no diálogo sobre ética de outras religiões e a realidade da vida cotidiana em contextos inter-religiosos.
Infelizmente ouvimos muito mais sobre as más notícias das relações inter-religiosas ao redor do mundo. Isto é o que vende. Contudo, há muita boa nova e abordagens criativas das relações inter-religiosas entre cristãos e pessoas de outras religiões ao redor do mundo que são plenas de esperança e criatividade. Seguem aqui alguns pequenos exemplos:
No Seminário de Hartford temos uma disciplina obrigatória em diálogo inter-religioso.
Há algumas semanas atrás, a nossa classe foi visitar a Mesquita no final do período de jejum durante o Ramadã. Eu estava sentada ao lado de uma mulher cristã da Indonésia que estuda conosco. Assim que o Iman começou suas orações, ela começou a sussurrar as palavras junto com ele, fluentemente. Quando terminaram as orações, eu perguntei a ela como ela sabia essas orações muçulmanas em Árabe. Ela disse: “Ora, na Indonésia as escutamos 5 vezes ao dia, assim eu aprendi a conhecê-las.” E ela complementou dizendo: “Essas orações são reconfortantes para mim, elas me relembram de meu lar que está tão distante. ”.
Eu fui à Indonésia recentemente e fiquei hospedada com um casal cristão. Os dois são professores numa universidade cristã de Jacarta. Eles me contaram como, algum tempo antes de minha visita, eles estiveram trabalhando com crianças muçulmanas no seu bairro. Nos sábados as crianças apareciam com grande entusiasmo para aprender canções, jogos e outras atividades divertidas. Os pais dessas crianças ficaram preocupados, pois receavam que esses cristãos tentassem converter suas crianças ao cristianismo. Assim, num ato criativo de resolução de problemas e de construção da paz, este casal foi até a Mesquita ali perto e se ofereceu para ensinar voluntariamente aos pais e à liderança da Mesquita as dinâmicas que as crianças apreciaram tanto, para que assim, eles pudessem continuar a usá-las para ensinar as crianças muçulmanas de maneira que elas se divertissem e se mantivessem interessadas.
As orações muçulmanas que confortam a mulher cristã. Cristãos ensinando muçulmanos dinâmicas para melhor ensinar as doutrinas muçulmanas às suas crianças. Estes são pequenos exemplos, mas eles sugerem um paradigma de relações entre muçulmanos e cristãos que é de cooperação pacífica, não de hostilidade. Isso porque eles têm uma fonte de relações ecumênicas na qual basear-se e aprender coisas. Os cristãos têm a oportunidade, e a responsabilidade mesmo, de corrigir suas próprias pressuposições sobre estes relacionamentos e ajudar outros em sua própria cultura a fazer o mesmo. Em assim fazendo, eles podem ajudar comunidades cristãs ao redor do mundo a rejeitar a retórica do ódio que é terrivelmente prejudicial em tantos lugares, pois as relações pacíficas de vizinhança têm sido infectadas pela pressão da política internacional do ódio e do medo.
Um outro desafio para cristãos cosmopolitas é o de assumirem a cidadania mundial. Isto não significa que os estadunidenses, ou os brasileiros, ou os nigerianos deixem de sê-lo, mas que internalizemos o fato de que somos, quer gostemos ou não, cidadãos do mundo. Não se pode, por exemplo, pensar sobre progresso genuíno e sustentável na solução das questões ambientais de nossos dias se pensarmos segundo os limites das fronteiras nacionais. Não podemos solucionar questões como imigração com cercas, guarda de fronteira e legislação, ignorando, ao mesmo tempo, as relações econômicas internacionais, etc.
Organizações ecumênicas e internacionais, como o Conselho Mundial de Igrejas, possibilitam aos cristãos um caminho para avançar em direção à realidade e abraçar o desafio da cidadania e da responsabilidade mundial. Essas organizações possibilitam um fórum para pensar e agir em conjunto, globalmente, sobre temas como as relações econômicas mundiais, ou o meio-ambiente e, portanto, discernir juntos o caminho a seguir.
Pensar juntos globalmente é um antídoto contra o cativeiro cultural que caracteriza as nossas igrejas. A participação nessas organizações capacita pessoas a verem a si mesmas, suas pressuposições, seus estilos de vida, de uma maneira nova e aumenta a habilidade de exercer autocrítica e serem fiéis ao evangelho que proclamam.
A boa nova é que, para assumir esta perspectiva cosmopolita, cada pessoa, cada grupo, pode começar por aproveitar os recursos que já estão amplamente disponíveis através de relações ecumênicas nos lugares onde vivemos. O cristianismo ecumênico, nossa pertença comum a este vasto mundo de redes, é um convite festivo à vida abundante para todos.
Heidi Hadsell, teóloga e cientista política, presidenta do Hartford Seminary, em Hartford, Connecticut (EUA).Fonte: http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=253&cod_boletim=14&tipo=Artigo
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