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Olhai os lírios dos campos... Elucubrações em torno da atual espiritualidade citadina

Olhai os lírios dos campos... Elucubrações em torno da atual espiritualidade citadina

Das muitas releituras...
Perdoem-me a irreverência e a pitada de ironia. Em meio à confusão de nosso tempo alguns fatos e alguns textos da Bíblia me chegam à mente. Misturo-os e os utilizo sem contextualizá-los. “Olhai os lírios dos campos que não semeiam nem colhem, nem Salomão se veste como eles”...
Mas, onde estão estes privilegiados seres chamados lírios? O que são lírios? Onde estão? Quem os viu? Impossível vê-los nas cidades e entre os enormes edifícios... Como reconhecê-los e entender algo de sua proclamada beleza se não convivemos mais com eles?
“E sentaram-se em grupos, comeram e foram saciados”... Como viver esse convívio simples em meio à agitação e insegurança de nossos tempos? Rodeados das ofertas do McDonalds?  Dos muitos “fast foods” das cidades?  Da fumaça dos ônibus e da correria sem fim das grandes cidades?
“Escolha seu sanduíche ou seu prato... Se preferir temos uma seleção de fritas e saladas com os molhos os mais diferentes que podem acompanhar sua escolha”. Seu paladar em primeiro lugar!
Tudo é rápido... Comemos, ouvimos música, vemos televisão, encontramos um amigo... Voltamos para o trabalho! Chegamos a casa, exaustos!
Na periferia das cidades é o mesmo ritmo embora a canção seja diferente. Muitas barraquinhas e ambulantes oferecem comida para todos os gostos e possibilidades financeiras, junto aos pontos de ônibus, nas portas de oficinas e lojas.
A música, ecoando ao mesmo tempo de muitos alto-falantes, revela a multiplicidade de preferências. Cada ouvido seleciona o som que mais lhe agrada e se aproxima da barraca que mais o atrai. Ou pode ainda escolhe viver com seu som pessoal, o “personal Ipod”, balançando-se no ponto de ônibus, cantando baixinho ou mascando chicletes ou tomando cerveja. Nada te perturbe... Fique na sua, meu...!
“A lâmpada do corpo é o olho...” Diante da televisão e dos jogos eletrônicos renascem nossos olhos...  E aprofundam-se nossos desejos... O que é iluminado ou apagado em nós? A quem vemos e com quem convivemos? Que imagens se formam em nós? Para que?
“Quando o olho é sadio todo o corpo fica iluminado...”.
E a RayBan, entre outras,  nos oferece os melhores óculos para proteger seus olhos contra os efeitos danosos da luz solar....  Mas, se não quiser gastar, os camelôs têm a preços módicos uma cópia perfeita das melhores marcas. No fundo, o que é o falso e o que é o verdadeiro? O importante é que seus olhos precisam estar protegidos e, sobretudo, na moda.
“Quem tem ouvidos para ouvir ouça...” O que é mesmo que temos que ouvir? Não há como não ouvir...  A invasão de ruídos nos persegue e nos desaprende o sentido do silencio, caminho para ouvir outros sons. O silencio real é quase insuportável. Temos sempre que estar escutando um som super alto... E depois vem a surdez precoce nas suas diferentes formas e significados.
Algumas soluções espirituais oferecidas por nosso tempo...
Cada um pode escolher o seu caminho, erigir seu altar, fazer suas preces ou ficar calado em seu canto. Cada um pode ter seu guru que não cobra nada a não ser uma ajuda para manter a casa da prece... Cada um pode ver na televisão seu programa religioso preferido, obter curas e participar de celebrações eucarísticas. Tudo “à la carte”! Estamos num tempo privilegiado de escolhas individualistas. A religião televisiva está aí... E é tudo livre, meu... Para trás os coletivismos religiosos e o rigorismo dos tempos antigos.
Agora é sua vez de encontrar a profundidade obscura e escondida de seu ser... Esqueça-se do mundo exterior e encontre sua interioridade na intimidade de seu quarto. O que é mesmo que a gente encontra? E quando a gente não tem um quarto pessoal?
Aprenda a fazer meditação...  Seu desempenho profissional poderá ser favorecido. Diariamente, o Mestre X estará à sua disposição. Qualquer contribuição é benvinda, embora a orientação seja gratuita!
Leia a Bíblia: o pastor F estará pronto para orientá-lo a descobrir a partir da Bíblia os caminhos de Deus em sua vida. O curso é grátis e sua Bíblia será entregue em sua casa com um disco na voz de seu cantor preferido. Escolha a voz, preencha o cupom e deposite no Banco Y sua oferta, sem esquecer de adicionar o custo do envio. Tudo para a glória do Senhor! Amém. Só o Senhor salva... Priorize Deus em sua vida. Não deixe de vir ao templo do Reinado do Rei. Procure o templo mais próximo de sua casa. Lá você tem um encontro marcado com seu Senhor. Só Ele poderá transformar a sua vida. Deposite no altar do Altíssimo a sua dádiva e Ele lhe dará o cêntuplo. Creia e será salvo! Quem prioriza o Senhor será priorizado por Ele. Cure-se pelas plantas... Prepare você mesmo seus florais e cremes nutritivos... Pelo preço de três aspirinas diárias você poderá fazer seu curso, preparar a combinação que se ajusta a seu momento e, sobretudo encontrar a paz... Só a natureza é capaz de fazer milagres! Experimente e comprove! Cure-se pelas cores... Método fácil e eficaz. Acesse o nosso site e obterá as informações de que necessita. Se estiver interessado avise-nos que lhe enviaremos um manual... Estamos fazendo a reforma agrária de Deus... Visite nosso projeto na Bahia. Centenas de famílias trabalham na terra de Deus... Você pode ser mais um investidor na seara do Senhor! Ele resolverá o que os governos não resolvem! E mais, seu investimento rende para você, ajuda os outros e é agradável ao Senhor. Não perca a oportunidade de fazer o bem e receber o bem!
Sirva ao poder de Deus... Quem serve ao Senhor está sempre protegido. Vejam o que aconteceu no Haiti onde o povo é idólatra seguidor do vodu! Que horror! Que primitivismo! Atraíram o demônio e só deu terremoto, morte, destruição... Mas, você, ouça a voz do único Senhor. O verdadeiro culto se realiza quatro vezes por dia nos nossos diferentes Templos. Nossos pastores estão preparados para lhe dar a ajuda espiritual de que necessita e, sobretudo livrá-lo das sutis garras de satanás.
Mais além das soluções atuais... Diante do espetáculo espiritual comercial de nossos tempos somos insistentemente convidados a olhar os corpos humanos e suas circunstâncias. Tanto sofrimento inventado para além dos sofrimentos comuns à condição humana... Para quê? Para cultivar vaidades, poderes absolutos, dominações, glórias passageiras... Para acumular bens que a ferrugem e a traça destruirão... Para se sentir poderoso ou um louvável “fazedor” do bem... Nossa humanidade está enferma numa guerra fratricida sem fim! Guerra é sempre guerra e sempre imaginamos que deve haver um ganhador! Tudo por um instante de prazer e de vida que se crê superior. Tudo para manter um efêmero poder. Tudo pela insaciável paixão de ter sempre mais. E vai-se o homem como uma palha carregada pelo vento. Dele nada fica e na maioria das vezes nem mesmo a memória de seus feitos. Às vezes a vida nos aparece como uma comédia insana e outras vezes como um drama de proporções diluvianas. Os mais pobres são sempre as primeiras vítimas... Falamos de bem e de justiça, mas nos agarramos à construção de um mundo que só se sustenta com a produção da violência. Todos somos cúmplices, em graus diferentes, dos dilúvios, das queimadas e das muitas destruições sociais. Que fazer? Que caminhos buscar para que nos salvemos da crueldade de que somos capazes? Que novos amores podem apaixonar nosso coração para que as utopias não saiam de nossa vida?
Hoje mais do que antes há comidas materiais e espirituais para todos os gostos. Eu também tenho as minhas preferências, embora sinta dificuldade de encontrar lugares comuns ou uma comunidade onde as pessoas tenham no corpo mais ou menos fomes parecidas, onde gostem de sabores que se assemelham. Apesar disso, de repente, a gente se descobre, se reconhece, se aproxima um do outro como se fôssemos cativos de uma mesma saudade. E fazemos uma comunidade mais ou menos fluída onde sentidos e amizades circulam.
Às vezes sinto-me meio fora de moda e da moda... Não é só a idade, a formação e as muitas falhas e limites escritos em minha história. É como se me sentisse muito longe das novas espiritualidades. Embora reconheça a orfandade que nos acomete a todos, especialmente aos mais vulneráveis, assim como a fome de sentido que nos é própria intuo que o caminho é outro. Não dá para dar razão a todos, explicar tudo, justificar tudo, entender tudo... Não dá para usar o nome de Deus em vão, o nome do amor, ou dos valores que sustentam a nossa humanidade. Acredito na tradição da verdade, da ajuda mútua, da irmandade, da simplicidade como forma de vida capaz de gerar um pouco mais de respeito entre nós. Ainda acredito que precisamos nos educar para não sermos lobos uns para os outros, para criar bons hábitos, belos ritos, fazer memória coletivamente. Mas, espanto-me cada vez com a inadequação das minhas crenças ao espetáculo religioso ou ao mercado espiritual individualista que se desenvolve entre nós. A chave do espetáculo atual são as palavras PODER, LUCRO e VAZIO... Cada um quer fazer crer aos outros o poder de seu deus através de suas pregações. Cada um quer acumular bens em seus próprios baús. Cada um tenta segundo seu próprio modo iludir o outro preenchendo os vazios da vida com um palavreado sem fim e sem sentido...  Sem querer ser juíza ou moralista me vêem ao espírito as palavras de Isaias: “Este povo me louva com palavras, mas seu coração está longe de mim...”.

Entretanto, apesar dos pesares sinto que muitas pessoas ainda buscam desesperadamente algo que as salve desta espécie de guerra que estamos fazendo contra nós mesmos. Buscam a arte, a poesia, o canto, enfim a beleza como forma de manter a grandeza da criação humana. Acreditam nas coisas simples da vida capazes de nos abrir para uma experiência de beleza e ternura. Acreditam na luta pela partilha dos bens e no respeito às muitas formas de vida. Nossa salvação parece começar aí... Apesar do efêmero de nossa vida e nela de nossas paixões, lutar contra a banalização da vida, contra a grosseria de todos os tipos, que nos agride e, sobretudo agride os mais pobres continua sendo um desafio para nossa sobrevivência como espécie. E aqui incluo também as religiões e seus espetáculos. Creio que alguns românticos ou simplesmente, aqueles e aquelas que ainda lutam pela vida digna acreditando que ela “é bonita, é bonita e é bonita”, anunciam algo que parece escapar de nosso cotidiano violento e trágico. Anunciam os pequenos caminhos de redenção, os instantes fugidios de eternidade através das coisas simples e belas. Fazem-nos intuir o quanto necessitamos perceber que ainda podemos encontrar coisas belas, gestos de justiça e ternura, ainda podemos captar a singeleza de uma rosa, a complexidade de uma borboleta ou a agilidade de um pássaro... Coisas tão simples, mas únicas realidades capazes de transfigurar o mundo e nos convidar a acreditar de novo na frágil grandeza do ser humano. Está escuro... Mas, quero recomeçar a cantar e tentar “olhar os lírios dos campos”.
Ivone Gebara
Fevereiro 2010