Uma reflexão sobre o texto bíblico de Marcos 7.24-30 – O encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia.
É importante entendermos as inúmeras possibilidades de interpretarmos um mesmo texto, da importância de nos localizarmos histórica e geograficamente, de se haver uma contextualização cultural, sócio-política e econômica. E da enorme diferença e possíveis interpretações de acordo com a cosmovisão, preconceitos e paradigmas que levamos para o texto.
Identificamos apenas três interpretações, sendo elas: 1- Histórico-salvífica. 2- Paradigmática. 3- ‘Tendência à teologia da prosperidade’.
Escolhi então escrever algumas linhas aqui sobre a terceira interpretação. Porque a abordagem indicando o contexto de exploração em que viviam os camponeses hebreus é em minha opinião muito atraente. E gostaria de lembrar o quanto antigo e ao mesmo tempo contemporâneo é este assunto.
Antigo sim, porque remete-nos ao Antigo testamento à exploração dos camponeses desde o período vetero-testamentário. À lembrança de textos como os do profeta Miquéias 740-700 a.C.
Em Miquéias 2.1-5 encontramos trechos como: “têm o poder em suas mãos”, “planejando a injustiça e tramando o mal...cobiçam campos, e os roubam; querem uma casa, e a tomam. Assim oprimem ao homem e à sua família, ao proprietário e à sua herança.”; muito parecido com o contexto cultural helenista adotado pela mulher siro-fenícia. Um contexto onde toda a estrutura social estava a serviço desta exploração, onde o sistema político e social corruptos eram vergonhosamente opressores e exploradores: “...comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão?” Mq 3.3
“... por um nada vocês exigem uma hipoteca insuportável” Mq 2.8-10
É com muito pesar que observo a atualidade desta mesma abordagem, e a forma como Deus tem sido esquecido, tanto quanto no texto de Miquéias 2 e 3, e no de Marcos 7; temos esquecido de observar que Deus ainda hoje continua realizando o milagre da multiplicação dos pães, e observamos também que este pão não tem sido repartido de forma justa. Observamos isto claramente quando nos deparamos com as grandes ‘catedrais’ que nós temos permitido que se construa às custas de arrancar um ‘dízimo’ de famílias que têm dificuldades até de se sustentar. Quando nos deparamos com os altos salários dos pastores, que já nem pastoreiam mais, administram multidões, multidões de anônimos que estão longe de conhecer o verdadeiro significado do “partir do pão”, que não sabem mais o que é comunidade. Sem falar da vergonha que estes “lobos em pele de cordeiro” espalham com suas falcatruas em busca de um enriquecimento ilícito até aos olhos da justiça dos homens.
Uma sede de enriquecimento que justifica sua necessidade de ter muito, e que é ensinada aos discípulos destas correntes visionárias que buscam o crescimento a qualquer preço. Um crescimento onde não existe mais envolvimento, amor, conflitos naturais dentro de uma comunidade de fé. Onde se busca a paz, mas conforme “o mundo a dá”. Onde o irmão que não tem é porque não está com Deus e não sendo ‘povo de Deus’ nada impede que se oprima mais.
“Não há um só fiel em nosso país, não sobrou um único homem correto; está todo mundo de tocaia, cada um caça um irmão para matar!” Mq 7.2
Mas resta-nos sempre esperança, esperança de que um dia “os diferentes possam dar-se as mãos”. Em que poderemos celebrar juntos o milagre da multiplicação dos pães que ainda hoje vemos em nossos campos, acontecendo todos os dias. E o camponês não mais será explorado, mas verá a justa partilha. Onde os “cachorrinhos” (que ainda não reconhecem o amor deste Deus), poderão se achegar e conhecer o milagre diário de Deus, e nos assentarmos todos à mesa, como irmãos. E devo concordar, isso “só acontece quando ambas as partes estão dispostas a deixar-se transformar” .
Leandro Priori
Bibliografia:
- BibleWorks for Windows. Versão 7.0.012. Copyright BibleWorks 2006.
- Bíblia de Jerusalém. Edição de 1998 - Revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. 2206p.
- GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Danker. Léxico do N.T. Grego/Português. Tradução de Júlio P. T. Zabatiero. São Paulo: Edições Vida Nova, 1991. 228p.
- HOEFELMANN, Verner. Superando fronteiras: O encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia (Mc 7. 24-30). In: Revista de estudos bíblicos. Evangelho e culturas. Nº 41. Petrópolis: Ed. Vozes, 1994.
- PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 1993. 248p.
- SILVA, Airton José da. A voz necessária: Encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998. 142p.
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